Memorias

A memória para pensar o auto cuidado através do cultivo das plantas

Maré, Rio de Janeiro

Autor: Jorge Magnun

Na pandemia do COVID-19, por conta do isolamento social, as pessoas tiveram que olhar mais para si, conviver com o seu próprio eu. Nesse período, nos demos conta da falta de cuidado que temos com o nosso corpo e psicológico. Nesta fase, as plantas me ajudaram. Tive então a vontade de entender melhor a origem da minha ligação com a natureza e de onde vem o prisma de enxergar esse contato como algo intrinsecamente importante para a minha saúde mental.

Lembro quando começou a pandemia e que nos primeiros dias de restrições necessitei me afastar do meu filho de forma abrupta, ele foi para São Paulo passar esse tempo na casa da avó Dany, o que gerou muitas sequelas. As duas semanas planejadas se transformaram em seis longos meses de afastamento.

Durante todo esse tempo só conseguia vê-lo por fotos e vídeos, o que acalentava o meu coração, mas deixava ao mesmo tempo um sentimento duro de aperto. Não sabia se o veria novamente. O medo da morte, de contrair o vírus e ser acometido pela doença era gigantesco. As plantas nesse processo foram o pilar para me ajudar a passar por este momento.

Após esse período extenso de distância, o meu filho retornou ao Rio de Janeiro e voltou a conviver comigo. Dias depois eu testei positivo para COVID-19 e soube o resultado, justamente, quando estava regando as plantas com ele. Fiquei muito triste no momento e tive outra ruptura com ele. Precisei cortar os laços depois de vivenciarmos um dia tão agradável. Me isolei por 14 dias.

Lembro-me do sentimento dele vir ao meu portão e sorrir de longe, pois não podíamos ter contato. A sensação mais estranha e vazia que já passei na vida foi ver o olhar tão puro de saudade com aquele sorriso dele que não podia terminar com um abraço. Isso machucou demais meu coração. As plantas e meu contato com a natureza foram fundamentais nesse processo e os ensinamentos de resiliência das minhas gerações anteriores colaboraram para enfrentar mais uma batalha.

Segundo a minha mãe Ellen Santos até os meus dois anos de idade morei com ela em São João de Meriti, zona norte do Rio, na casa de uma tia dela. Era um lugar bastante arborizado com muitos animais e no meio do mato. Minha mãe por motivos de trabalho necessitou me deixar aos 02 anos de idade com o meu pai Jorge Martins, que morava com a minha avó e as minhas tias na Penha, zona norte do Rio.

Pelo que parece, este foi meu segundo contato com a natureza. Tanto que quando eu recebi a foto do meu filho, durante essa pandemia, brincando no sítio da avó dele, senti como se eu já tivesse vivido aquele momento. Conversando com a minha mãe, ela me contou um pouco desse processo. Eu também brincava no meio do mato na casa da tia dela. Lá era grande e eu corria o dia inteiro, brincava com os animais e tinha muito contato com as plantas.

Após esse período, vivi até a minha adolescência estudando na Rua do Couto a mesma rua que morávamos inclusive, vivíamos em uma casa grande com muitas pessoas.

Foi fundamental esse cuidado aprendido no passado com as mulheres da minha família, que estiveram comigo em todo o meu processo de formação e criação.

A minha avó Dona Sebastiana cultivava um jardim enorme que rodeava a casa inteira. A rotina dela todo dia era acordar bem cedo e ir regar as plantas, realizar as suas orações no quartinho de santo dela e depois recolher algumas ervas. Acabei entendendo a natureza a partir das ervas, dos banhos e dos chás. Minha avó sempre foi umbandista, religião herdada em nossa família.

Por assistir o movimento de Dona Sebastiana todas as manhãs, aprendi a ser mais sensível a esse contato com o natural. Além do amor que empenhava nos seus rituais, nossa família tinha uma dinâmica que quando se preparava um banho de ervas todos necessitavam tomar, da pessoa mais nova que era minha prima criança até a minha avó. E isso também se mantinha no preparo de um chá. Minha avó esperava o último chegar do trabalho para então tomar o seu.

Passamos por uma forte ruptura quando necessitamos sair daquela casa na Penha e ir morar em um apartamento no mesmo bairro só que em uma rua diferente. Minha avó teve que deixar aquele jardim para trás. Levamos somente algumas plantas e deixamos os animais. Meus cachorros, os dois que eu criava, alimentava, dava banho, limpava área deles todos os dias também ficaram.

Nesse processo de mudança o contato com a natureza se perdeu um pouco, além de percebemos que era um prédio antigo com famílias conservadoras e extremamente racistas que não aceitavam uma família preta morar em seu prédio. Sofremos racismo com as paredes das casas pichadas pelo lado de fora, com dizeres do tipo “Saiam daqui seus macacos”, “Voltem para África”. Por um bom tempo eu bloqueei essa memória. Só fui falar sobre os acontecimentos anos depois sabendo da importância de revelar traumas para cuidá-los e ajudar outras pessoas que passam ou vivem a mesma situação. Essa exposição se materializou em poesias.

Miscigenação

Precisamos falar algumas verdades deste país da dita miscigenação.
Brasil! País forjado na colonização do homem branco que nos impôs a escravização do corpo,
mas não da alma dos nossos irmãos.

De um povo preto que era rei em sua terra e livre para viver sem as correntes dessa prisão.
As algemas, a berlinda, o cepo, o açoite e o tronco, instrumentos herdados e adaptados dos
tribunais da inquisição, só nos serviram para alimentar o fogo da nossa libertação.

Que queimou em Palmares, Ambrósio e Carucango e são chamas vivas até hoje nas favelas
do nosso povão, criadas pela nossa engenharia de auto construção e organização pautada pela autogestão.

E o que dizer de Ganga Zumba, Zumbi dos Palmares, Carukango, Rainha Teresa e Dandara
líderes da nossa luta pela emancipação.

E ENTÃO VEM A HISTÓRIA NOS DIZER COMO FOI NOSSA LIBERTAÇÃO?

História contada pela mentira da escola, e não pela favela e sob a ótica da nossa versão.
Quem foi Isabel? Ah uma princesa que nem de longe representa nossos pretos
que com suor e muito sangue lutaram pela nossa abolição.

Essa luta que até hoje infelizmente não nos livrou das amarras dessa opressão, já que
o racismo é estrutural e atinge uma grande parcela preta da população.

Para os pretos não saber de nossa verdadeira história, só nos gerou máscaras brancas dentro
da diáspora negra com requintes de ilusão, assim como dizia Fanon.
Quem é a empregada de hoje? A arrumadeira? A lavadeira? A serviçal?
Se não a preta que há séculos atrás trabalhava na casa grande e se aliviava pela sua submissão,
já que para ela essa era a única saída para tentar se ver livre da violação.

Que viva! O Candomblé, Umbanda, Quimbanda, Batuque e todos os nossos orixás,
não precisamos dos brancos ditando a nossa oração em ancestralidade,
pois temos a nossa própria religião.

Pois bem voltando a miscigenação.

Teorizada por Darcy Ribeiro no mito da modernidade,
que mais serve para embranquecer do que enegrecer a discussão.
Já que o moreno não se encaixa culturalmente em nenhuma classificação.

E por fim é interessante passar essa visão,
alguém aí avisa pros brancos que o seu status de branquitude para o povo preto só nos serviu para a criminalização.

Pois não é atoa que a carne mais barata do mercado é a nossa,
que vive morrendo nos becos e vielas desta nação.

Tentando apenas ser e viver como mais um cidadão.

Autor: Jorge Magnun Santos Martins – RJ

Depois deste período, aos 13 anos, fui morar na Maré com minha mãe, meu padrasto e meus irmãos que eram filhos dele. O marido de minha mãe se chamava Abdias do Nascimento e veio do Ceará aos 20 anos. Para não esquecer a sua terra, mantinha uma plantação pequena onde cuidava de animais, colocava água num recipiente pendurado no cano para os beija-flores beberem e ficava admirando tudo isso. O quintal que eu cuido hoje, no Morro do Timbau, é herança que ele deixou quando faleceu.

Como pai do Cauê, tento trocar com o meu filho um ensinamento que obtive desde muito pequeno e que remonta toda uma herança de vida que se entrelaça com a ancestralidade, o autocuidado com corpo e a mente. A partir da minha história, consigo compreender o quanto é importante esse movimento para a vida dele, de se constituir como um ser humano parte do natural e não superior a ele. Além de compreender que a saúde mental, no contexto de uma sociedade doentia, é preciso ser fortificada com a volta às raízes mesmo que no meio urbano.

O hábito de ter plantas em casa, esse querer estar rodeado por verde, o cuidado com a terra seja com por conta da beleza ou até mesmo para recursos medicinais trás muito uma tradição ancestral. Dentro da Maré, segundo o Censo realizado pela Redes de Desenvolvimento da Maré, existem 12.411 mil pessoas que mantêm áreas verdes em casa.
Esse movimento, onde moradores se tornam responsáveis por nosso próprio ambiente sadio, representa um viés do próprio quilombo que resiste por si só graças à luta dos seus. Mas não devemos deixar de pontuar que existe um esquecimento do poder público que não impulsiona espaços verdes dentro do território.

Desses dados acima, é importante ressaltar em minha pesquisa o quantitativo de pessoas que tem esse plantio voltado as questões medicinais, alimentação e religião, três pontos que me encaixo e, principalmente, o primeiro por usar muitas ervas para chá e banhos.

Eu resido no Morro do Timbau e segundo esses dados, 5,3% das pessoas vêm cultivando as plantas por questões medicinais, 1% se relaciona a alimento e outros 1% à religião. É extremamente interessante observar o quanto o cultivo, mesmo com todas as questões geográficas de dificuldades de manutenção, ocorre para uma parcela da população

A resiliência da Terra, que corresponde com a capacidade que a natureza tem de responder a uma situação de impacto ambiental ou perturbação e se recuperar, se relaciona muito com o momento que estamos passando. Vejo a pandemia, um momento tão caótico, como uma “oportunidade” de me conectar ainda mais com a minha ancestralidade, com meu filho, minha história e o saber natural.

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