Memórias

Evidenciando a memória da MCLARE

Maré, Rio de Janeiro

Autora: Isabelle Rosendo

Por cerca de 25 anos, mais de 40 famílias viveram em uma antiga instalação de um estaleiro desativado após o aterramento do local. No começo, o território abandonado foi ocupado por 15 famílias, que construíram seus lares de maneira improvisada dando início a região que o Complexo da Maré conheceu como Mclaren. Com o passar dos anos o número de famílias no território se ampliou e a Mclaren existiu sem recursos básicos, como água e luz elétrica. Em 2019, os moradores tiveram seus barracos removidos.

A Mclaren fazia parte do Complexo da Maré, não como uma das 16 favelas do Complexo, mas como uma região entre a Vila do Pinheiro, Morro do Timbau e embaixo da ponte da via expressa Linha Amarela, umas das principais vias de acesso da cidade do Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo que a história da McLaren foi marcada pela invisibilização dentro da própria Maré, sua localização ao lado da linha amarela fazia com que ela fosse um retrato da favela para quem passava por lá.

Era um território ocupado por casas de madeira e papelão, bem próximas umas às outras. Cada barraco possuía diversas cores, por serem feitos de materiais diferentes, mesmo que apagadas e desgastadas pelo tempo. Algumas casas tinham portas, outras apenas uma cortina fechando a entrada. O chão parecia ser úmido e ter sempre vestígios de terra. A Mclaren se situava ao lado de um valão, que separava a comunidade e a ciclovia da Vila do Pinheiro, ligadas por uma pequena ponte de madeira. Me recordo da presença de lixo próximo às casas e da falta de luzes, que deixava o local bem apagado durante a noite.

Eu, Isabelle, sou cria da Maré e à McLaren faz parte do local em que nasci e sempre transitei. Quando lembro desses trajetos, a tristeza, angústia e incapacidade por não poder fazer nada pelos moradores são sentimentos que nunca vão se apagar. A precariedade da McLaren me fazia ver e entender que existe desigualdade até mesmo dentro da Maré.

Há menos de 10 minutos daquele espaço, eu tinha um lar confortável para viver, enquanto ali viviam mais de 40 famílias em condições de grande vulnerabilidade, sem cama para descansar e direitos básicos, como luz e água. Ainda assim, sempre me recordo de crianças rindo e brincando, os moradores sentados juntos durante a tarde. Lembro das risadas. Me questionava o porquê daquela desigualdade em um território que já é tão precarizado.

A Maré vem sofrendo com diversas transformações em seu território. Segundo o Censo Populacional da Maré, em 2013 a Maré já contava com 129770 moradores, o que a tornava, na época, o 9° bairro mais populoso da cidade e abrigando 9% de toda a população que mora na cidade do Rio de Janeiro. Hoje, provavelmente, temos uma Maré ainda mais densa. São muitos comércios, projetos e espaços de lazer espalhados por toda a comunidade. Cada dia crescendo mais, às vezes colhendo melhorias, outras, encarando uma situação ainda mais precarizada.

Durante a gestão do Prefeito Marcelo Crivella (2016-2020), a prefeitura veio com a proposta de fazer um parque na área da McLaren e com a consequente remoção de seus moradores. O Maré Que Queremos, projeto promovido pela Redes da Maré, já possuía um levantamento da região que foi usado para se aproximar das famílias na tentativa de impedir a remoção, entendendo todo o vínculo dos moradores com as suas casas e suas dinâmicas. “A gente sabe como é esse processo de aluguel social, levar para outras áreas bem mais longe que inclusive era essa proposta da prefeitura. Só que enfim, não teve jeito. A gente se aproximou, tentou fazer essa conexão, esse acesso daqueles moradores com a defensoria pública, núcleo de terra, como poderiam fazer com que eles conseguissem ficar ali, mas não funcionou […] Tiraram e o parque da Maré não foi feito”, me contou Henrique Gomes, cria da Maré e coordenador do projeto.

A Mclaren presenciou o desenvolvimento da Maré mas não fez parte das melhorias. De acordo com o Censo Maré e a dissertação de Roberta Lemos, “A Maré e seus complexos: Desvelando o micro território da Favela McLaren com destaque para as condições de vida e saúde de seus moradores”, de 2016, a gente vê claramente a segregação que existe entre a comunidade Mclaren entre o território da Maré como um todo. Apesar de ter suas próprias histórias e dinâmicas, a McLaren nunca foi inclusiva como umas das 16 favelas da Maré, o que reforçava ainda mais essa invisibilização.

Vivemos em uma estrutura social onde a favela é oprimida e inferiorizada, entretanto existem espaços ainda mais inferiorizados dentro dela. São locais mais precarizados e que sofrem o impacto das opressões duas vezes. Alguns moradores classificam a Mclaren como “O Fim do Mundo”, um local sujo e que tinham medo de passar próximo.

Essa falta de cuidado coloca vidas em risco e submete pessoas a condições cruéis. Quase sempre essas pessoas são negras, faveladas e sem escolaridade. Segundo o Censo Maré, 52,9% dos mareenses se autodeclaram como pardo, 36,6% como branco e 9,2% como preto. Na entrevista que Roberta Lemos fez com 30 moradores da McLaren, 30% dos moradores se autodeclaram como pardo, 3,33% como brancos e 53,33% como pretos. Cabe ainda dizer que um morador se autodeclarou como “escura” e 3 outros como “morena”.
Quando a gente fala de escolaridade na Maré, os dados do Censo da Maré mostram que apenas 37,6% completaram o ensino fundamental dentro do Complexo da Maré e 18,96%, o ensino médio. Para os entrevistados da McLaren, apenas 4 moradores concluíram o ensino fundamental (13%) e 2 moradores, o ensino médio (7%).

Quando o assunto é saneamento básico, a realidade da McLaren era ainda mais discrepante. O Censo Maré traz o dado de que 98,3% dos domicílios da Maré possuem acesso à água canalizada, 71,5% tem o lixo coletado diretamente na porta e 26,4% deposita em um local onde o lixo é recolhido pela COMLURB. Na entrevista com os moradores da McLaren, apenas 30% possuíam água encanada dentro de casa, 86,7% jogava o lixo nas caçambas de lixo e 13,3%, diretamente no valão.

Os números expressam e confirmam uma realidade que é cruel: mesmo dentro de uma favela em que todos já sofrem diariamente com a falta de saneamento e seus impactos na saúde, quanto mais pobre e preta for uma região, mais ela é sujeita aos problemas ambientais. Essa é uma realidade proposital e se configura como uma prática de Racismo Ambiental. Num contexto de Mudanças Climáticas e de uma vulnerabilidade cada vez mais do territórios marginalizados, as regiões que sofrerão com os maiores impactos também são as regiões com menor capacidade de aguentá-los.

Essa realidade também me faz lembrar da comunidade em que vivo: a Nova Maré, que também tem seu território e seus moradores inferiorizados. Não na mesma proporção que a Mclaren, mas ainda assim visto e tratado como o território “pior” ou “diferente” da Maré. Sempre vejo minha comunidade sendo motivo de piada nas rodas de conversas.

É importante lembrar que a história da McLaren não é diferente da história de formação do Complexo da Maré. Em diversos momentos, a Maré foi ameaçada de remoção e os moradores tiveram seu vínculo com o território desrespeitado, sem levar em conta o dia a dia de cada um e em como as vidas são impactadas com a realocação em regiões possivelmente distantes e fora de seus costumes.

A ocupação do região da Maré começou a partir do Morro do Timbau, única elevação entre as 16 comunidades. Muitas pessoas chegavam naquele lugar vindos do nordeste ou removidos de outras favelas do Rio de Janeiro, principalmente da Zona Sul da cidade. Naquela época era tudo manguezal e as casas, para se adaptarem a essa região, foram construída sobre palafitas, sofrendo com as inundações pelas variações das marés e possível contaminações, já que a comunidade crescia e não existia saneamento. O cenário e a histórico não se difere do que, por 25 anos, a McLaren foi.

Todas essas histórias da Maré fazem parte da construção de cada morador, de como a gente se entende no mundo. Sou cria da favela, mas meu processo de reconhecimento como moradora e favelada só se deu em 2017 no Preparatório do Ceasm, onde tive contato com professores que contavam e mostravam a história da minha favela. Comecei a me identificar com essa história e a me orgulhar desse lugar. Com isso, surgiu o interesse de estar presente em projetos e causas em prol da minha comunidade, em fazer algo pelos meus.

O Museu da Maré foi a instituição que proporcionou minha primeira experiência atuando em um projeto dentro da favela. Lá estudávamos a história da Maré, fazíamos pesquisas e ações para os mareenses. A partir disso, criei uma relação ainda mais aprofundada com a comunidade: uma relação de afeto com a minha história e com as realidades vividas aqui. Toda essa relação foi muito importante para eu chegar aqui, agora, tendo como interesse aprofundar e compartilhar olhar sobre a McLaren.

Compreender nossas memórias a partir do território em que vivemos é conhecer e entender nossas identidades e histórias. É através de um novo olhar explorar, mostrar e debater espaços que são frequentemente marginalizados pela mídia e apresentados como cenários de violência. É importante evidenciar que possuímos culturas, localidades de lazer, memórias e histórias de um povo que merecem atenção e respeito. A favela deve ser vista como um território de poder.

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